O saber para viver bem
O
pensamento escotista está muito distante de ser um todo artificial de audaciosas
sutilezas, como o acusaram os adversários ao contrário é eminentemente prático,
enquanto busca conhecer e esclarecer o fim último do homem e de
proporcionar-lhe os instrumentos aptos para consegui-lo. Toda a sua especulação filosófico-teológica
desemboca numa atitude existencial e de ordem prática: uma ética da ação. Trata-se de uma moral do encontro e da
existência comunicativa.
Scotus parte do princípio de que o amor
divino transcendeu o infinito para vincular-se ao finito. Em contrapartida, somente o amor humano da
vontade livre poderá transcender o finito para unir-se ao infinito. Trata-se, definitivamente, de uma ética do
amor. O Doutor Sutil pensou
profundamente porque amou em profundidade, mas com um amor concreto, como ele
mesmo diz: “Provou-se que o amor é verdadeiramente práxis”. Desta práxis se compreende e se explica como
o homem deve agir e viver no seu ser e estar no mundo e na sociedade.
É prático todo ato que provém do desejo
da vontade, mas em condição de conformar-se à reta razão. Isto explica claramente a conformidade da
vontade a uma lei, dando-se assim uma identidade entre o prático e o
normativo. A vontade é uma potência
indeterminada que se autodetermina por si mesma. Sem dúvida a liberdade não é arbitrária nem
irracional. De fato, a vontade é o
vértice do intelecto racional. A
liberdade se realiza na autodeterminação da vontade natural e racionalmente
orientada ao bem. A ação boa é aquela
que corresponde a um ato da vontade conforme a reta razão.
A vontade escotista é capaz de
determinar-se acima de qualquer interesse e de valorizar-se numa ética do
desinteresse. Scotus apresenta uma
filosofia da liberdade dentro de uma teologia que admite a possibilidade
natural de amar Deus por si mesmo e fora de qualquer interesse egoísta.
O Doutor Sutil nos oferece a esplêndida
articulação de um humanismo cristão no qual o saber está a serviço do bem viver
e do bom conviver, ou seja, de uma sociedade justa, pacífica e fraterna.
Fonte: Conferência
dos Ministros Gerais da Primeira Ordem Franciscana e da TOR, por ocasião do
encerramento do VII Centenário da morte do Beato Duns Scotus em 08 de novembro de 2008. www.franciscanos.org.br
QUEM
FOI DUNS SCOTUS?
João Duns Scotus nasceu
em Duns, na Escócia em 1265/1266. Em 1280 entrou na Ordem franciscana; estudou
filosofia e teologia em Oxford, sendo ordenado sacerdote em 1291 em Northampton
(Inglaterra). Entre os anos de 1291 e 1296, aprofundou seus estudos de teologia
na Universidade de Paris. Retornando à Inglaterra, foi professor em Cambridge
(1296-1300) e em Oxford (1300-1302). Foi chamado a Paris para ministrar aulas
de teologia e ali permaneceu durante apenas dois anos (1302-1303), sendo
obrigado a abandonar a universidade por não ter subscrito o apelo de Filipe o
Belo, rei da França, contra o papa Bonifácio VIII (1303). Depois de obter o título
de magister theologiae da própria Universidade de Paris, Scotus voltou a
ministrar ali aulas de teologia entre 1305 e 1306. Em 1307, foi transferido
para Colônia (Alemanha), vindo a falecer improvisa e prematuramente no dia 8 de
novembro de 1308. Cognominado “Doutor sutil”, Scotus deixou-nos uma substancial
produção literária.
Fotos: Túmulo de Duns Scotus - Alemanha - 2012 - Arquivo particular irmão Francisco Eduardo.
QUAL A IMPORTÂNCIA DE SCOTUS?
Scotus vive em um
contexto desafiador e, ao mesmo tempo, extremamente fecundo. O século XIII, no
qual também viveram Tomás de Aquino e Boaventura, é atravessado por duas
trajetórias filosófico-teológicas bem definidas: agostiniano-boaventuriana e
aristotélico-tomista. E uma única matriz polêmica a provocá-las e animá-las: o
ingresso das obras de Aristóteles na universidade de Paris. Nesse contexto,
Scotus assume uma postura crítica face aos pressupostos e às principais posições
defendidas por ambas as escolas, revelando-se como um pensador original.Destaca-se
pela fina acribia em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões
e esmerar-se na especulação acerca das questões filosóficas e dos mistérios da
fé. O Doutor sutil se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular
capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus
argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e
inclusivos. Com Scotus, talvez o pensamento cristão tenha atingido o mais alto
vértice da especulação.
SCOTUS
É AINDA ATUAL?
Scotus é filho daquele
período plasticamente descrito pelo grande historiador Huizinga como “outono da
Idade Média”. Fruto maduro daquela fecunda estação, ele sorveu no melhor dos
modos a mais genuína seiva que corria pelos veios mais profundos dos sulcos de
então, situando-se, para todos os efeitos, entre a Idade Média e a Modernidade.
O “nosso tempo” parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes
sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto diante
dos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um
sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir
o total desencanto face aos projetos totalizantes e por demais pretensiosos da Modernidade.
Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a
“epistemologia forte”: racionalista e naturalista. No entanto, poder-se-ia dizer
que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado e proposto
por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV. Talvez seja essa a razão
do crescente interesse, perceptível em nossos dias, por Scotus e seu
pensamento.
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